Perguntamos para o chatGPT: “quando alguém escreve uma música usando uma inteligência artificial, de quem é a autoria?”. Sua resposta foi um retumbante “depende” - de fatores como legislação e propriedade intelectual, contratos e acordos e nível de intervenção humana.
Errado não está. Novos dilemas éticos e legais se impõem sobre toda uma comunidade criativa e musical que ainda lida com questões de direitos autorais mal resolvidas e artistas que clamam por mais autonomia sobre seus catálogos. Portanto, a nova realidade da autoria musical é uma grande colcha de retalhos que não é tão óbvia quanto possa parecer.
O resultado é um mercado bastante confuso diante de novas tecnologias e possibilidades que aceleram a produção e cortam custos, porém que inserem novas variantes antes não previstas. Boa parte da legislação que rege o setor é defasada - não apenas porque estamos falando de um negócio ainda muito fechado na lógica das gravadoras e editoras majors, mas também porque é quase impossível ter leis que acompanham a velocidade do avanço das tecnologias criativas. Assim como as ferramentas estão em constante evolução, as questões éticas e legais também estão.
Isso não muda o fato de que a utilização da inteligência artificial na indústria do entretenimento já vem gerando muito atrito e trazendo inúmeras questões trabalhistas à tona. É o caso das atuais greves de atores e roteiristas de Hollywood, que colocaram a IA no centro da conversa criativa. São profissionais que veem as oportunidades e condições de trabalho minguando e uso de seus escritos, vozes e rostos sendo usados para alimentar máquinas que futuramente causarão inevitáveis demissões em massa. Seria uma crise da indústria criativa global?
Como dá para notar, essa não é uma questão meramente brasileira, já que o debate em torno da autoria na música tem gerado uma série de dilemas éticos e legais que estão moldando o cenário da criação musical em todo o mundo. Para explorar esse assunto, conversamos com Mariana Azevedo, advogada especializada em propriedade intelectual, e Daniel Valle, sócio da Costa&Valle Advogados, para entender o atual panorama no Brasil e além; e com o empresário e assessor de imprensa Jorge Velloso, sobre o lado de gerenciamento artístico nessa realidade que segue em mudança constante.
A inteligência artificial e a propriedade intelectual
O primeiro dilema que enfrentamos é a questão da autoria quando se utiliza a IA na composição musical. A legislação brasileira, como estabelecida na Lei 9.610/1998, requer que uma obra seja criada por uma pessoa física para ser protegida por direitos autorais. Portanto, atualmente, não há base legal para atribuir autoria a máquinas ou empresas de IA, como a OpenAI, dona do chatGPT.
Mariana Azevedo e Daniel Valle explicam: "Diante disso, não é possível falar de titularidade originária de pessoa jurídica, ou seja, da forma como a legislação está posta hoje, não há que se falar em empresa ou máquina 'criadora' e as obras desenvolvidas exclusivamente por sistemas de IA são, portanto, de domínio público."
No entanto, é importante notar que a criação por IA geralmente envolve intervenção humana significativa, tanto no desenvolvimento dos sistemas de IA quanto na criação das obras por meio de prompts ou inputs. Os advogados acrescentam: "Há muitas discussões em andamento sobre a necessidade de alterações legislativas para melhor adaptação das leis às novas realidades impostas pelos avanços da inteligência artificial."
Desafios das Novas Tecnologias
Um exemplo notável desses dilemas envolve o uso da imagem de artistas já falecidos, como acontece no cinema, recriando atores como Bruce Lee e Paul Walker; nos palcos, com hologramas; e no caso de Elis Regina, em uma recente publicidade que utiliza técnicas de deep fake. A legislação atual não acompanha as mudanças tecnológicas rápidas, levantando a pergunta sobre o uso irrestrito dos direitos de imagem por seus herdeiros.
A legislação frequentemente se encontra um passo atrás da dinâmica e constante transformação da realidade social. O desafio para os profissionais do Direito é manter-se vigilantes diante dessas mudanças e adaptá-las aos diversos sistemas legais, ao mesmo tempo em que tentam antecipar, na medida do possível, as implicações futuras das tecnologias já existentes e em constante evolução. Isso requer um esforço colaborativo essencial para enfrentar essas questões complexas.
No Brasil, há anos se discute a necessidade de revisão da lei de direitos autorais em vigor há mais de duas décadas, que infelizmente não avançou conforme o desejado, deixando a legislação consideravelmente desatualizada.
Por outro lado, casos como o de Elis Regina têm o mérito de fomentar discussões produtivas sobre a urgência de adaptar as leis brasileiras às novas tecnologias. No contexto específico desse caso, é importante observar que o Código Civil estabelece que cônjuges, ascendentes e descendentes de pessoas falecidas são os responsáveis pela proteção da imagem do falecido, com autoridade sob o uso comercial de sua imagem. Em princípio, se Maria Rita e outros legítimos representantes autorizaram o uso da imagem de Elis Regina na propaganda da marca de carros, isso não representa uma violação dos direitos da artista.
Essa autorização baseia-se na preservação tanto das características físicas quanto das características associadas ao papel social desempenhado por Elis Regina. O avatar de Elis na propaganda respeitou esses atributos, utilizando um banco de imagens da artista em vida. No entanto, a recriação da imagem da artista por meio da IA suscita questões éticas que transcendem a esfera da legalidade.
Mariana Azevedo comenta: "A reconstituição da imagem da artista através de IA tem implicações éticas que ultrapassam a discussão sobre legalidade. Muitos se incomodaram com o fato de sua imagem ter sido associada à Volkswagen, uma empresa que assumiu posturas bastante questionáveis na época da ditadura, um período autoritário da história da brasileira contra o qual Elis lutou abertamente”.
Essas discussões refletem a complexidade do cruzamento entre direitos autorais, ética e tecnologia na era da inteligência artificial, exigindo uma análise cuidadosa e uma abordagem multifacetada.
A legislação sempre corre atrás das mudanças sociais e tecnológicas, mas é crucial que o Direito se adapte a essas evoluções. A revisão da Lei de Direitos Autorais no Brasil, que data de 1998, é um exemplo disso. Questões como a legitimação dos herdeiros para tutelar a imagem de falecidos e autorizar seu uso para fins comerciais também estão sendo reavaliadas. Daniel Valle e Mariana Azevedo destacam: "Infelizmente os projetos propostos não foram para frente e a legislação ficou bastante defasada."
Recomendações para Artistas e Criativos
Para artistas, produtores e outros criativos na música, é fundamental estar atento às cláusulas contratuais que envolvem o uso da IA. É aí que entra em jogo um bom empresariamento ou assessoramento jurídico, garantindo que os direitos sobre a obra e a compensação adequada serão feitas ao artista. Não são raros os casos de novas composições sendo feitas com “feat” do chatGPT, o que gera questionamentos sobre como trilhar essa nova esfera da criação musical.
“Eu acho que sempre temos que nos adaptar ao novo buscando uma forma justa e honesta de compensar a arte como a questão mais importante de todas. Eu jamais negaria uma proposta dessa de um artista, mas entender todas as maneiras de pagamentos de direitos autorais e de voz se fosse o caso deveria estar em primeiro lugar”, alerta Jorge Velloso, que recentemente divulgou o single “Pra Você Ficar”, do grupo 3030, cuja identidade visual foi toda realizada com o auxílio da IA.
Algumas gravadoras e editoras estão incluindo cláusulas em seus contratos que permitem a cessão total e definitiva dos direitos de voz ou imagem, e não apenas sobre os fonogramas. Os advogados Mariana Azevedo e Daniel Valle aconselham: "É importante que os artistas avaliem com muita atenção as cláusulas que vêm sendo incorporadas aos diferentes contratos utilizados no mercado do entretenimento."
A questão da autoria compartilhada provavelmente moldará o futuro da música criada com a ajuda da IA. A colaboração mais estreita entre humanos e máquinas está se tornando uma tendência, o que levanta novos desafios legais e éticos. Jorge Velloso conclui: "Como quase tudo na música cada caso é um caso bem específico, mas eu apostaria que a autoria compartilhada será o futuro. Não que eu concorde com isso".
Os Desenvolvimentos Mais Recentes
A inteligência artificial é uma pauta fadada a permanecer desatualizada - à medida que reflexões sobre ela são publicadas online, outros avanços já se concretizaram. Embora este seja um momento empolgante em muitos aspectos, ainda há muito a se debater sobre o uso dessas ferramentas em âmbito profissional, acadêmico e criativo.
Globalmente, países como China e Estados Unidos estão avançando na discussão sobre IA. No Brasil, o Projeto de Lei da Inteligência Artificial (PL 2338/23) continua sendo debatido no Senado, refletindo a crescente conscientização sobre os desafios da IA.
Em agosto, um tribunal americano decidiu que uma obra de arte criada por inteligência artificial não está sujeita à proteção de direitos autorais, mantendo a orientação anterior emitida pelo Escritório de Direitos Autorais dos Estados Unidos em março. No entanto, permanece em aberto a questão de quanto input criativo humano é necessário para esse propósito. A decisão levanta debates importantes sobre os limites da criatividade gerada por IA e seu reconhecimento legal.
O tribunal, ao confirmar a orientação do Escritório de Direitos Autorais, está sinalizando que as obras de arte produzidas exclusivamente por IA, sem contribuição significativa de um criador humano, não podem ser consideradas como passíveis de proteção de direitos autorais. Isso implica que essas criações podem ser usadas, reproduzidas e distribuídas livremente sem a necessidade de permissão ou pagamento de royalties.
No entanto, a questão central que ainda não foi totalmente esclarecida é até que ponto o input humano é considerado "significativo". Em casos em que um ser humano desempenhou um papel ativo na configuração dos parâmetros da IA ou na seleção das obras produzidas, poderia ser argumentado que a criatividade humana desempenhou um papel importante e, portanto, merece proteção.
Essa decisão judicial destaca a necessidade de uma discussão mais aprofundada sobre como a lei de direitos autorais deve se adaptar às novas formas de criação impulsionadas pela IA. À medida que a tecnologia continua avançando, é provável que mais casos desse tipo surjam, e os tribunais terão que refinar suas interpretações para acompanhar a evolução da criatividade digital.
O Brasil e o mundo tentam adaptar suas leis e contratos para refletir essa nova realidade, garantindo ao mesmo tempo a proteção dos direitos dos criativos e o uso responsável da inteligência artificial. Até lá, a cautela e o bom senso dos usuários é o melhor caminho a se trilhar em uma estrada que não para de crescer.
Comentarios