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O que podemos aprender com: lo-fi

Atualizado: 11 de dez. de 2023

Os beats do lo-fi hip hop são um fenômeno no mundo todo. Confira lições que artistas de todos os gêneros podem aprender com essa cena efervescente.


No universo musical global, os beats envolventes do lo-fi tornaram-se um fenômeno que transcende fronteiras e estilos. Colocamos uma lupa sobre um cenário que tem um público cativo e expressivo e todo um modus operandi que acontece alheio às movimentações padrão do mercado. 


Quais são as lições valiosas que artistas de todos os gêneros podem extrair dessa cena com muito potencial e público fiel? Embarque nessa imersão nos elementos que distinguem o lo-fi, desafiando músicos a repensarem suas abordagens criativas em busca de uma inspiração que ultrapassa fronteiras sonoras e geográficas.


Identidade local, sonoridade global


O lo-fi se espalhou pelo mundo como qualquer outro gênero ou movimento musical: incorporando sons das cenas regionais. Combinações como afrobeats com lo-fi geram estéticas muito específicas, ao passo que a união com a música brasileira cria uma aura tropical para uma cena já global. O importante é entender que o lo-fi não é um gênero pasteurizado ou uniforme e constantemente evolui com as identidades dos seus criadores.


A incorporação de elementos locais ajuda a transformar o lo-fi de dentro para fora. 

“Isso é uma das coisas mais bonitas da nossa cena. Acho seguro dizer que vários produtores (eu incluso) tiveram até de revisitar a bossa nova para se reinventar e aprender técnicas, levadas e grooves. Foi primordial pra mim pelo menos mergulhar nos ritmos da bossa novamente agora adulto e produtor na busca de simples estudo, para abrir novas formas na minha cabeça de tocar violão e contrabaixo. Os grooves e músicas que eu fiz inspirados nisso só vieram graças a essa fusão muito brasileira do lo-fi com a bossa. E os próprios selos brasileiros levam essas bandeiras bem brasileiras para frente, o que eu acho muito bonito”, analisa Lucas Bellator, artista por trás do projeto Expedidor, citando labels como Lofi Brasil e Tangerina Music.


Ele fotografa e filma bandas desde 2012, mas se lançou artista apenas em 2018, como Expedidor. Desde então, possui 5 discos e uma vasta gama de EPs, singles e colaborações. Já teve lançamentos pelos maiores selos do lo-fi brasileiro e agora segue de forma independente. Este ano, apenas, já foram dois trabalhos: o disco Contrapasso e o EP Slowerspaced, ambos colocando o lo-fi como protagonista em meio a muitas outras referências.



Expedidor lo-fi
Expedidor


Essa versatilidade é chave para entender o mercado brasileiro. “O lo-fi é muito plural e tem artistas que misturam as batidas do hip hop com diversos outros estilos, como o jazz, neo soul e até ambiente, e aqui no Brasil isso não é diferente”, compartilha Daniel Sander, artista por trás do projeto colours in the dark e fundador do selo Sleep Tales e ex-aluno do curso Music Marketing.


As cenas locais de cada país também criam nuances e texturas específicas. É o caso de Pernambuco, um dos cenários mais efervescentes da música brasileira. Recife, Olinda, Garanhuns, Caruaru, Surubim, Gravatá, Triunfo são polos musicais muito fortes que mostram a potência dos criadores brasileiros para muito além do eixo Rio-São Paulo. A ideia do “faça-você-mesmo” é intrínseca aos movimentos musicais dessas cenas, independente do gênero musical. Mas o fato de a Nação Zumbi ter uma faixa intitulada Lo-Fi Dream não pode ser mera coincidência.


“Eu diria que não existe um movimento com uma direção bem definida, mas um rizoma de movimentações, produções, ocupações, provocações, dissonâncias, criações, etc. Vários artistas e bandas de gêneros e configurações diferentes continuam produzindo música nos homestudios pernambucanos e utilizam sonoridades lo-fi em suas produções. Posso citar alguns nomes como Lado Fim do Mundo, Sam Silva, MAYA, Alexandre Maria, Tagore, Sargaço Nightclub, D Mingus, RENNA, Ugo Barra Limpa, entre muitos outros”, explica Zeca Viana. Ele é doutorando e mestre em Sociologia (UFPE), bacharel e licenciado em Filosofia, professor de Filosofia e Sociologia, pesquisador, músico, produtor e apresentador do programa Recife Lo-Fi, na Frei Caneca 101.5 FM.


Lição: Evidencie suas raízes. Artistas que criam obras de cunho pessoal e com uma visão localizada específica acabam desenvolvendo uma identidade mais profunda para si e com o público.


Crescimento do lo-fi ao longo do tempo


Embora pareça que o lo-fi surgiu com canais de YouTube e suas transmissões 24h, isso não é verdade. Essa linguagem tem origem nas décadas de 1950 e 1960, com gravações de baixa fidelidade resultantes de equipamentos simples. Nos anos 1980 e 1990, o lo-fi se destacou com a cena musical independente e a popularização de gravadores acessíveis. Esta estética tornou-se uma expressão artística consciente, impulsionada por músicos que buscavam uma produção mais crua. Isso não se perdeu com o estabelecimento do lo-fi hip hop beats, o gênero como passamos a conhecer a partir dos anos 2010. Só que essa geração trazia o seu próprio modo de realizar o do-it-yourself.


“Quando as pessoas começaram a produzir lo-fi, elas não pensavam em dinheiro. Era realmente um nicho em que os músicos faziam os beats instrumentais vindo do hip-hop porque eles gostavam. Aquilo era uma forma pura de criação, sem expectativa de retorno financeiro ou de fama. E ainda tinha um sentimento enorme de comunidade: os produtores se ajudavam, divulgavam o som um do outro, faziam colaborações, trocavam experiências, tudo isso sem ego envolvido. Eu diria que esses foram os primeiros diferenciais do gênero, pois o foco na criação e na inspiração e o senso de comunidade não só elevou rapidamente a qualidade das músicas, mas também trouxe uma ‘verdade’ artística e de união com elas que reverberou nos ouvintes. Muitos jovens se identificaram com isso, querendo fugir do que parecia ‘perfeito’, buscando algo mais orgânico, uma conexão e identificação mais pessoal com os criadores e o sentimento de pertencimento a uma comunidade”, relembra Daniel Sander.


Com o avanço da tecnologia digital e a ascensão das plataformas de streaming, o lo-fi se transformou em um gênero mais reconhecido, caracterizado por batidas relaxantes, samples e uma atmosfera descontraída. Isso é fruto de uma sociedade mais cansada, claro, mas também mais consciente da necessidade de promover momentos de relaxamento em meio à rotina pesada. Esse contexto se tornou primordial para a combinação de música relaxante e que trouxesse de novo o senso de comunidade que se perdia. Jovens que amavam o gênero começaram a difundir canais para divulgação do beats, com alguns percebendo que além da curadoria musical, era possível dialogar com universitários que precisavam focar e reduzir o estresse.


“Isso começou a bombar, porque juntou: uma música feita com ‘verdade’; uma comunidade unida e que se ajudava; selos musicais que criaram uma nova forma de divulgar as músicas e se relacionar com os artistas; e a necessidade que crescia entre os jovens em busca de melhorar o foco e tornar os estudos mais agradáveis. Não podia dar errado. E mostrando como esse formato de fato deu certo, da exata mesma forma que o gênero inteiro foi criado, eu criei o lo-fi pra dormir, um sub-gênero ainda mais calmo, que também estourou e que ajudou a popularizar ainda mais esse tipo de som no mundo. Tudo de forma orgânica, verdadeira artisticamente e com um grande apoio da comunidade”, Sander resume.


Embora a pandemia de 2020 tenha dado a entender que houve uma explosão do lo-fi pela necessidade de foco em ambiente de estudo e trabalho em casa, é preciso ressaltar que as pessoas passaram a descobrir um gênero musical já amplamente difundido e estabelecido, graças a uma grande comunidade de ouvintes e produtores. Esse trabalho de base foi fundamental para um crescimento ainda maior.


“O ‘novo lo-fi’ tem como base a figura do produtor, um foco mais instrumental, voltado para a música como um meio: ambientação, pano de fundo para meditação, pensamentos, estudo, etc. É uma nostalgia de ruídos terapêuticos aplicada para o cotidiano, quase como uma musicoterapia contra o aceleramento e a dispersão”, complementa Viana.


Lição: Construa suas bases. O crescimento gradual é mais sustentável e permite que os resultados sejam mais duradouros.



Zeca Viana lo-fi
Zeca Viana (Crédito: Kamila Ataíde)


Curadoria artística 


O lo-fi, como qualquer outro gênero musical, já foi taxado de genérico. A sintonia nas produções e estéticas utilizadas pelos produtores criou uma linguagem específica, agora difundida - mas também diluída pelo número exponencial de novos lançamentos. Pela facilidade de produzir beats em um aplicativo de celular, passaram a surgir lançamentos que apenas se assemelham à proposta, mas sem um direcionamento artístico e criativo real, em busca apenas de plays nas plataformas de streaming em um momento em que o interesse no gênero está no auge.


A comunidade lo-fi, no entanto, continua ampliando o alcance de suas criações originais e inovadoras, com a ajuda de playlists - como lofi sleep, lofi rain, com curadoria do Sleep Tales e com mais de 500 mil seguidores no Spotify -, rádios 24h por dia e labels dedicadas à cultura lo-fi.


“Se você já gosta de lo-fi ou está interessado em saber mais, procure por artistas, selos e canais que possuem um trabalho mais artístico e você verá que a qualidade do som é infinitamente melhor. Sim, o lo-fi continua crescendo mesmo com esse cenário, mas é importante sempre incentivar e mostrar aqueles que fazem um trabalho artístico de verdade para que o segmento não caia no senso comum de ser feito de ‘músicas genéricas’ e afastar os ouvintes”, alerta Sander.


Lição: Fuja do óbvio. Todo gênero é feito de padrões que estão aí para ser quebrados. Estude os “clássicos” para aprender como subvertê-los. Deixe de copiar os veteranos e passe a inventar algo com ousadia.



Além da trilha para foco e sono

Não há problema algum em ser a música a que as pessoas recorrem para relaxar ou dormir - isso mostra confiança e intimidade com um gênero ou artista. 


“A figura da Lo-Fi Girl, sozinha, no seu quarto, escrevendo e olhando pela janela é um símbolo forte que reflete boa parte da Geração Y (Millennials). Como bem analisou Zygmunt Bauman na obra ‘Vida Líquida’, a nova geração está jogando suas âncoras onde podem para encontrar acolhimento, e a música tem um grande poder de acolher. Acho que o lo-fi catalisa esse senso de comunidade justamente por essa ética DIY. Além disso, os diversos canais do YouTube têm esse caráter de rádio, com pessoas ouvindo ao vivo, comentando, como uma comunidade que está ali, naquele momento”, reflete Zeca Viana.


Porém, o lo-fi não se restringe a isso. A estética dos lançamentos e selos converge para estes temas, no entanto os artistas estão aos poucos promovendo propostas diferentes. Elas englobam aspectos visuais e as performances ao vivo, levando a música para além do YouTube.


“Existem produtores de muita qualidade buscando se projetar como artista, fazendo videoclipes, trabalhando uma imagem artística e tocando ao vivo das mais diversas formas. Desde sets de DJ em palco Chillout de festivais e shows individuais fazendo Live Looping até shows com banda. Tudo isso tem rolado no mundo do lo-fi aos poucos”, conta Daniel, que já reuniu artistas brasileiros de vários estados para tocar no festival Polifonia, no Vivo Rio.


Lição: Supere expectativas. Entregue o que se espera de você e mostre que é possível, também, surpreender dando um passo além.


Sem se levar a sério demais


No universo lo-fi, a prolificidade é bem-vinda, encorajando a produção de vários discos e a exploração de diversos gêneros e samples, sem amarras conceituais. A comparação com artistas do cenário indie brasileiro e do rap evidencia uma certa rigidez, muitas vezes condicionada à busca por reconhecimento no mainstream antes de lançar novos trabalhos. 


Se os artistas aprendem a não levar suas carreiras tão a sério, o resultado é uma mentalidade mais livre, menos dependente de aprovação externa. A ênfase recai na constante produção e no lançamento de músicas, independentemente de formatos ou orçamentos.


“Lance muito. Lance música instrumental, com voz, sem voz, com clipe de grande orçamento, de baixo orçamento, clipes só usando cenas de anime... só lance. Continue em movimento e inundando as redes sociais e de streaming com os seus sons e ideias visuais. Tem até um quê de punk nisso e eu acho que o lo-fi tem isso muito enraizado. Artistas de outros segmentos se beneficiariam muito de levar suas carreiras menos a sério e só continuarem lançando pelo prazer de lançar e ver as pessoas reagirem às tuas novas ideias. Pegando um assunto contemporâneo como exemplo, sejam mais Andre 3000! Soltem seus álbuns tocando flauta e tá tudo certo”, resume o Expedidor.


Lição: desprenda-se do perfeccionismo. Encare cada lançamento como aprendizado. Não é sobre lançar “qualquer coisa”, é sobre lançar bons trabalhos com consistência, levando ao crescimento em médio e longo prazo.



lo-fi
A Lo-Fi Girl é o símbolo do sucesso do gênero nas plataformas.

Plataformas como aliadas


O papel do YouTube e do Spotify para a disseminação do lo-fi tem sido indispensável. Entender como essas plataformas funcionam possibilita tirar melhor proveito de suas ferramentas para promover um crescimento estratégico de artistas e selos. 


“É um passo muito importante entender como cada plataforma funciona, quais ferramentas se pode utilizar, buscar entender como funcionam os algoritmos e entender o comportamento de consumo dentro delas. Destrinchar essas plataformas e adequá-las à sua estratégia é essencial. Existe uma certa resistência de vários artistas em investir tempo e energia nessas plataformas por conta de toda a discussão que existe sobre o pagamento por stream ser considerado baixo. Não estou dizendo que essa não seja uma discussão válida (ela é extremamente importante!), mas eu acho que essa questão, muitas vezes, trava os artistas pelo pensamento de ‘se paga mal, pra que que eu vou me esforçar?’. Isso é um problema porque hoje é inegável que a principal forma de consumo de música é nas plataformas de streaming e uma das principais formas de se conhecer novos artistas – e, consequentemente, ser descoberto – também é através delas”, reflete Daniel. 


Nadar contra a maré é válido em muitos sentidos, mas às vezes é preciso estudar o oceano para então entender como usar a água a seu favor. Uma coisa é certa: o ouvinte já está imerso nesses ambientes e com os ouvidos abertos para novos sons instigantes.


“Acho que as ferramentas são meios fundamentais para que a mensagem conecte com o ouvinte. A ideia de criar algo como uma rádio no YouTube trouxe esse aspecto de comunidade, acolhimento. Claro que tem toda essa questão de alcance e estudo de público, marketing, gráficos, comportamento nas redes, etc. Mas, acho que a questão é ainda mais sociológica e, quem sabe, filosófica e espiritual, algo que representa uma determinada geração. Como dizia o Manifesto Manguebeat: o artista precisa ser essa antena enfiada na lama, captar sua geração. Cantar sobre o seu quarto para ser universal: é justamente isso que a Lo-Fi Girl representa”, complementa Zeca. 


              

Lição: Estude o meio. Se a forma de chegar no ouvinte é pelas principais plataformas, trace sua estratégia a partir delas. É preciso conhecer o sistema para então “hackeá-lo”. 


O visual como conceito


A abordagem visual dos artistas de lo-fi é única. As capas dos singles e álbuns e os visualizers se tornaram um aspecto essencial de estabelecer o clima e a identidade de todo um projeto. 


“Sem dúvidas, as artes associadas às músicas, especialmente no YouTube, também foram muito importantes para a construção da imagem e disseminação do lo-fi. Essas artes, que sempre possuíram muita referência dos animes japoneses, refletiam perfeitamente quem eram os artistas e ouvintes do gênero. Era mais uma forma de conexão entre os criadores dos beats e quem procurava por aquelas músicas. Outro ponto importante dos visuais é que eles ajudam a tornar o trabalho ainda mais artístico e, também, complementam os beats instrumentais ao trazer referências visuais sobre os moods daquelas músicas. É um encaixe perfeito para o que é o gênero”, Daniel Sander explica.


Lição: Crie uma forte identidade visual. Quando a música e a sua representação visual estão em sintonia, isso ajuda a sedimentar a identidade de um trabalho. 



À medida que exploramos as entranhas do universo lo-fi, torna-se evidente que seus beats não são apenas uma tendência, mas sim um chamado à libertação artística. Fica claro que as lições extraídas vão além das fronteiras musicais, abrangendo uma mentalidade que transcende o convencional. A cena lo-fi, com sua prolífica produção e ousadia, instiga artistas de todos os gêneros a desvencilharem-se das amarras do mainstream e a abraçarem a autenticidade, lançando-se na criação por puro prazer e deixando que as reações do público guiem o caminho. 


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