A Inteligência Artificial veio para ficar - mas trouxe consigo inúmeras questões legais e éticas. A criação de novas obras com base em existentes é uma delas.
A Inteligência Artificial generativa vem causando mudanças em efeito dominó em múltiplas indústrias, e na da música não seria diferente. As profissões criativas estão na linha de frente dos impactos de ferramentas que vão da composição de letras à criação instantânea de sons mediante um simples comando. Essas mudanças estão mostrando que vieram para ficar, porém questões fundamentais, como os limites entre a geração de conteúdo e o plágio, permanecem sem respostas definitivas.
Depois que o mundo se divertiu às custas de Ariana Grande cantando Anitta e Freddie Mercury interpretando Chitãozinho e Xororó, o movimento agora é outro: barrar, por meio de processos judiciais, o uso de canções de catálogo para o treinamento de máquina. É por meio dele, afinal, que se criam ferramentas que hoje tiram o sono de gravadoras, músicos e produtores.
O motivo? O uso indiscriminado de gravações já realizadas, custeadas e assinadas. Elas são o principal ativo do negócio da música, e sua propriedade tem sido negociada com contratos milionários. O questionamento parte do pressuposto que, para a utilização dessas canções para qualquer fim, é necessário requerer, pelo menos, a autorização de seus proprietários.
“Quando se fala de obra, é uma coisa muito mais subjetiva e um pouco mais difícil de apontar um plágio. Mas quando se fala de fonograma, a gente está falando de algo mais objetivo pois tem custos de produção, de estúdio… É um material mais fácil de identificar e palpável em termos de propriedade”, explica Bruno Martins, CEO da Milk Music. Estes são apenas alguns dos conceitos sob escrutínio na era da IA.
Linhas cinzentas
Embora seja fato que as obras que conhecemos hoje estão protegidas pelo direito autoral, a criação de uma nova canção a partir delas não se torna, automaticamente, um plágio. Compositores humanos, por exemplo, se valem de suas referências colecionadas ao longo da vida para inspirar suas próximas criações.
Os limites desse uso caem em uma zona cinzenta sem precedentes — pelo menos até então. Ações movidas por gravadoras major contra apps como Udio e Suno podem começar o caminho de debate, em nível judicial, sobre até onde a Inteligência Artificial pode fazer uso de propriedades intelectuais.
“O que as plataformas fazem quando realizam o treinamento é jogar milhares, se não milhões, de fonogramas muito caros, muito custosos, em um liquidificador. Então, o que você vê, o resultado final de plataformas como a Suno, na verdade, são uma colagem de vários fonogramas criados anteriormente. E é por esse motivo que é um dilema um pouco mais sensível do que a gente tem em várias questões com o ChatGPT”, exemplifica Bruno Martins.
Especialistas no campo, como André Felipe de Medeiros e Igor Bonatto, estão pensando as aplicações da Inteligência Artificial para muito além das previsões apocalípticas. Ambos apontam para um caminho sem volta, em que a IA permanecerá integrada às profissões criativas, sem necessariamente causar sua extinção.
André Felipe de Medeiros, jornalista e especialista em Inteligência Artificial, destaca a complexidade do uso da criatividade humana para o machine learning. “Quando um robô cria um texto, imagem ou som, ele está gerando algo baseado em muitas contas de estatísticas de probabilidades para atender ao comando feito”, diz. O debate atual se concentra em saber se essa criação baseada em exemplos humanos constitui uma forma de apropriação intelectual. Para ele, o termo “pirataria” se refere mais à reprodução e venda de cópias idênticas de conteúdos existentes. No contexto da IA, “faz mais sentido discutir o plágio do que a pirataria”.
Mudanças à vista
Embora seja inegável o potencial de ferramentas já amplamente utilizadas, sua capacidade criativa ainda deixa a desejar. A comparação com o talento humano para criar chega a ser injusta, considerando que é recente o treinamento que possibilita gerar textos, poemas, letras de música, trabalhos acadêmicos e outros escritos.
Isso não muda o fato de que a IA generativa causa insegurança entre profissionais criativos. Medeiros observa que “todo artista que se propõe a fazer algo genérico está com os dias contados”. Isso porque plataformas que geram conteúdo de áudio, texto ou imagem podem facilmente substituir criadores que produzem trabalhos semelhantes. “Formamos toda uma geração de artistas que são fazedores de criações genéricas. Esse pessoal será facilmente substituído. Mas não os grandes artistas, independente de suas linguagens”, aponta.
Para preservar os empregos dos profissionais criativos, André Felipe sugere duas medidas: repensar o valor das criações formatadas e investir na formação de um público crítico. “Vale mesmo continuarmos investindo tanto em criações formatadíssimas que serão rapidamente descartadas?”, pergunta ele, enfatizando a necessidade de um público que valorize a originalidade. “Precisamos continuar investindo na formação de um público crítico, que não se contente com qualquer foto, qualquer texto ou qualquer música”.
Regulamentação necessária
O debate ético em torno da Inteligência Artificial esbarra nas limitações legais, já que a legislação de direitos autorais na maioria dos países não inclui essas aplicações. As movimentações nos legislativos brasileiro, dos Estados Unidos e da União Europeia são exemplos que demonstram que esta preocupação existe, porém ainda sem ramificações práticas.
Igor Bonatto, fundador e CEO da noodle, aborda a questão a partir dessa perspectiva. Ele argumenta que a pirataria surge de lacunas não resolvidas e regras indefinidas. Bonatto faz um paralelo com o Napster, que apesar de ser um símbolo da pirataria, impulsionou a transformação do mercado musical. “Lutar contra a IA é uma guerra perdida e desnecessária. Modelos seguirão sendo treinados legal ou ilegalmente”, resume.
O empresário irá ministrar o minicurso “IA: Inovação x Pirataria”, promovido pela Escola de Música e Negócios da PUC-RJ e Milk Music. Com data marcada para o dia 30 de julho e uma carga horária total de 10 horas, a iniciativa oferece uma visão aprofundada de como a Inteligência Artificial está transformando o universo musical. Devido à imersão no tópico, Igor Bonatto está mais que ciente dos riscos inerentes — e também dos possíveis ganhos ao adotar novas ferramentas como aliadas.
Ao contrário do embate, ele propõe uma postura proativa para beneficiar os criadores cujas obras são usadas para treinar modelos de IA. “Tecnologia de rastreamento de consumo já existe. Basta organizar, precificar e aprimorar o modelo. A pirataria sempre escancara desigualdades e oportunidades. Esta é uma grande oportunidade de beneficiar o mercado, não de prejudicá-lo”, complementa.
Coexistência
Ambos os especialistas concordam que, apesar dos desafios, a coexistência entre IA e criatividade humana é possível. Bonatto ilustra essa convivência ao comparar a arte gerada por IA com obras de artistas humanos. “Eu amo pinturas. Ao mesmo tempo, consigo admirar arte gerada artificialmente. Vez ou outra, vejo imagens geradas no Midjourney, por exemplo, e fico impressionado. Mas quando entro em um museu e vejo um quadro de um artista que admiro, é quando eu sinto algo de verdade. Na música, é a mesma coisa”, compara.
Igor Bonatto acredita que a IA pode potencializar o talento humano, permitindo que os artistas foquem naquilo que realmente importa. “Só sente insegurança quem não confia em seu trabalho ou ainda não viu como potencializar seu talento”, sentencia.
Novas ferramentas costumam causar apreensão ao serem introduzidas. Igor lembra que “sempre que alguma tecnologia muito revolucionária apareceu, o mundo se desesperou até entender que mudança nem sempre significa pior. Pelo contrário.” O que assusta dessa vez é a velocidade da transformação. No entanto, ele reforça a necessidade de adaptação e de enxergar as oportunidades que surgem.
Esta não é uma questão simples, pois envolve aspectos técnicos, legais e éticos. A IA pode ser usada tanto para combater quanto para facilitar a pirataria, dependendo de como é aplicada.
Uma coisa é certa: o impacto da Inteligência Artificial no mercado musical vem cercado de desafios, mas também abre portas para novas formas de inovação e valorização da criatividade humana. A discussão sobre pirataria e plágio é essencial para estabelecer um equilíbrio justo entre a tecnologia e os direitos dos criadores.
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